segunda-feira, 29 de novembro de 2010

2. O "Canto do Ego"

Motivada pelo frenesim experimentado nos diálogos com o Martins, senti que o meu blogue poderia oferecer-me a hipótese de reviver os tempos em que a vida era ainda uma realidade envolta em muitos panos e, por isso, os meus pares e eu gostávamos de divagar sobre ela, de a debater, de nos provocarmos uns aos outros, para extrairmos, das ideias em confronto, alguma espécie de sumo multivitaminado que nos satisfizesse a alma ou a curiosidade sobre o ser humano. E divulguei a novidade da minha publicação a pouco mais de duas dezenas de pessoas, aquelas que me pareciam vir a aderir à minha nova experiência. Apetecia-me escrever sobre a existência - mais de vinte anos depois de ter estado integrada em grupos em que ela era escalpelizada a todo o momento. Até então, e desde que me tornara mãe de quatro filhos e mudara a minha residência para uma cidade mais doce, eu havia sido muito mãe, muito esposa, muito dona de casa, muito professora. Estava a fazer uma caminhada pelos outros e com os outros, progredindo alegremente, mas sem consciência da falta de realização pessoal a nível intelectual. E essa noção foi avassaladora no momento em que percebi que ainda era capaz de discutir, debater, argumentar, e que isso me fazia bem ao ego. Caí em mim, depois de uma ausência de anos, sem que dela me estivesse a arrepender, pois vivi outras experiências maravilhosas, mas ansiosa por continuar a exploração daquilo que me rodeava, em movimentos de confronto de ideias com as pessoas que mais sentia pertencerem-me. Comecei então a postar. E esperei pelos comentários aos meus posts. Escrevia sobre tudo, mesmo sobre "ninharias", como cheguei a catalogar alguns assuntos, opinando as mais das vezes e com um jeito directo, frontal, crítico, e, por vezes irónico. À crítica irónica eu dava o nome de picadela e esperava que os meus congéneres se sentissem efectivamente "picados", ao ponto de me responderem picando-me... Aliás, esse desejo estava escrito no meu perfil, pelo que, para quem o lesse, não havia de passar despercebida a minha intenção. Porém, as reacções que eu esperava não se fizeram sentir por longo tempo, a nível geral, e nunca, por parte de algumas pessoas que, em tempos idos, tinham sido as principais companheiras de análise inflamada da vida. Verifiquei, cheia de pena, que o que tinha era um grupo de pessoas que não se interessaram por conhecer o blogue (até porque não eram adeptas das novas tecnologias da comunicação) e outro que o rejeitou, por palavras ditas fora dele ou mesmo sem palavras, através de um silêncio ensurdecedor. O grupo que o rejeitou tinha como principal opositora a Rute, que era, na altura, quem mais falava comigo. No seu entender, eu adoptara uma escrita ofensiva e devassadora da vida de amigos e conhecidos, pelo que não merecia comentários escritos nem orais. E, exceptuando alguns comentários a posts sem emissão de opinião, a principal apreciação que tive sobre o blogue, desde então até hoje, foi, repetidamente, a de que a vida dos outros não deve ser alvo de divulgação num blogue. - Eu já te disse várias vezes que não deves expor e criticar publicamente os procedimentos alheios - insistiu muitas vezes a Rute, acreditando que eu me convencia de que era essa a razão pela qual ela e outros não comentavam o que eu escrevia. Claro que eu, que não concordava com a Rita, também várias vezes, contrapus: - O que eu faço é uma composição de quadros da vida quotidiana das pessoas, incluindo a minha. Faço retratos com palavras, caracterizo a sociedade de uma forma entusiasmada, emitindo a minha opinião sobre aquilo que mostro. E, claro, mostro aspectos que muita gente esconde. Mas não vejo razão para melindres, pois ninguém é nomeado e quem não tem conhecimento extra-blogue sobre aquilo que exponho nunca conseguirá saber quem estou eu a referir. - Mas os próprios reconhecem-se. E pessoas próximas deles também podem reconhecer. - ripostava a Rute, mas eu continuava a discordar dela. Houve apenas um caso em que se chocaram dois comentadores, e, claro, as suas identidades ficaram conhecidas. Mas a identificação surgiu nos comentários, não no post. A minha desilusão e a minha tristeza eram crescentes, pois fui-me apercebendo de que algumas pessoas, que eram as minhas mais do que tudo desde a adolescência, em termos de amizade, estavam a formar uma nova opinião sobre mim, baseada no estilo da minha escrita, o qual não aceitavam. E a nossa relação em presença foi-se alterando e, apesar de ter havido tentativas para resolver o diferendo, elas nunca deram bons frutos e eu fui-me sentindo rejeitada. Paradoxalmente, o Canto do Ego, por me ter permitido conhecer outros bloguistas, teve também o efeito inverso em mim, pois, primeiro virtualmente e, mais tarde, pessoalmente, fui colhendo identificações com o meu modo de escrever e possibilidades de discussão de opiniões. O blogue agradou, sobretudo, a pessoas não ligadas à Rute e chegou a ser bastante comentado e várias vezes elogiado. Estas reacções vincadamente opostas a uma exposição da minha pessoa não faziam parte do meu horizonte de expectativas e fizeram soar as campainhas de alerta do meu cérebro. Todavia, como a minha avaliação do que escrevia não me fazia inclinar para a desistência, eu continuava à minha maneira, ao mesmo tempo que me crescia uma mágoa no peito, por saber que, desse modo, eu estava a perder um grupo grande que sempre fora de grandes amigos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

1. A Acção de Formação do Moodle

Inscrevi-me na acção de formação, com carácter obrigatório, uma vez que tinha ficado decidido, no conselho pedagógico, que os coordenadores de departamento deviam aprender a utilizar o Moodle, para, posteriormente, serem eles a transmitir esse conhecimento aos colegas, com o intuito de todos contribuirem para a existência de uma plataforma online onde passaria a estar disponível, mediante o conhecimento de uma password, toda a documentação importante para cada grupo ou departamento disciplinar. A ideia era para mim entusiasmante e compareci na primeira sessão determinada a não deixar que as vizinhas dos lados falassem comigo enquanto o formador explicasse a matéria, para depois conseguir desenvolver rapidamente um bom trabalho, que facilitasse o acesso a documentos normalmente espalhados no espaço e muitas vezes difíceis de encontrar. O formador era o Martins, naturalmente cansado em todas as horas, devido mais ao seu peso, que ultrapassa largamente a barreira dos três dígitos, do que ao seu trabalho para procurar seguir os melhores métodos de transmissão de conhecimentos. O Martins revelou-se um teórico e quis começar por abordar o estado do ensino ao longo dos tempos, centrando-se na época retratada pelos Pink Floyd no álbum The Wall, e selecionando textos e vídeos para nós comentarmos e estabelecermos uma comparação de fundo entre essa época e a actual. Poucos minutos depois de iniciada a sessão, já eu estava incrédula quanto ao tipo de exigência de um formador que estava ali para nos ensinar a construir uma "base de dados" numa plataforma de uso comum e com intenção de facilitação do trabalho prático. E, sinceramente, tive a sensação de ter entrado na sala errada, onde decorria uma acção diferente daquela em que me inscrevera. Mas, como eu nem estava ali sozinha, se aquilo não interessasse, sempre se passava um bocado na galhofa com os colegas, especialmente com a Madalena, a Edite e a Sara. Mas, curiosamente e como comentário de texto é algo que a mim não atrapalha, resolvi esmerar-me naquilo que era da minha área e enveredei por uma escrita irónica q.b. para que se entendesse a minha discordância sobre o caminho desviado da meta que o formador tinha escolhido. Eu estava era ansiosa para construir o espaço online para o meu departamento. Comentar texto para avaliação já tinha feito muitas vezes na faculdade e eu sempre gostei de ir directa ao que interessa, sem rodeios que não valham a pena. Mas fui ficando, claro. Até porque o ensejo para a brincadeira compensava. A Madalena dizia: - Raio do homem, só está aqui porque não há mulher que o aguente! E nós temos de o gramar. - A Sara discorria sobre o que seria uma mulher aguentá-lo, e todas contribuíamos para uma conversa que ele nem imaginava, pois, teoricamente, estávamos a trabalhar em grupo e ele, ao nosso grupo, que lhe apresentava as tarefas prontas com rapidez, deixou de ligar. Nem quando o chamávamos para esclarecer dúvidas ele aparecia. A Sara, chateada com isso, considerou que o melhor era passarmos a ir vestidas de outra maneira, para o provocarmos, o que fez a Edite perguntar: - De outra maneira? Que maneira? - E acrescentou que não queria saber dos créditos para nada e que se a ação continuasse assim, ela desistia. Então eu, para desanuviar, achei que podíamos ir desgrenhadas e rotas. Isso iria de certeza fazê-lo reparar em nós, que queríamos aprender e não éramos atendidas. Claro que a nossa brincadeira, como se adolescentes fôssemos, não passou disso mesmo e a ação chegou a acabar num belo dia, já depois das férias do Verão, ainda antes de se iniciarem as aulas. A minha nota só a soube muitos meses depois, já eu estava doente há algum tempo, numa visita que me ocorreu fazer ao Moodle, quando nem sequer pensava na ação. E, para meu espanto, tive dez, a nota máxima. E fui a única, o que eu acho que aconteceu porque só eu confrontei o Martins no seu modo de trabalhar e nas suas ideias (o que fiz subtilmente), e ele terá gostado disso. Mas também é verdade que fui a única a criar um verdadeiro entusiasmo pelo blogue. Todos criámos o que era preciso criar, uns melhor do que outros, mas só eu me entreguei de corpo e alma a argumentar contra as teorias do Monteiro... Tudo aquilo que cada formando escrevia ficava online e ao dispor de todos os inscritos e eu cheguei a ser notada pela disponibilidade para o debate e pela assertividade. Enquanto escrevia, pensava que alguém me iria criticar destrutivamente, mas aos poucos fui ganhando força, pois os colegas estavam do meu lado e encararam-me como porta-voz deles. O Martins, sentindo-se picado, picava-me também, o que levava a grandes discussões via Moodle, e isso agradava-me. Nas sessões presenciais, começou por ser quase impossível aprender alguma coisa, ora pelas exposições teóricas do Martins, ora por ele só se abeirar daqueles que quase não dominavam o Word, quanto mais recursos online. Mas, com o tempo, conseguimos vincar a necessidade de aprender alguma coisa, pois, caso contrário, deixaríamos de ir para ali perder o nosso precioso tempo. E a primeira aprendizagem mais ou menos suficiente que conseguimos foi a construção de um blogue. Inútil para quem estava ali para aprender Moodle, mas fulcral para o que viria a ser a minha vida a partir de então e até hoje. No dia em que começámos o blogue, surgiu-me, de imediato o título "Canto do Ego", e foi ali, entre colegas e em conversa, que nasceu esse blogue que ainda alimento e que começou com muito entusiasmo.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Preâmbulo

À beira dos três anos de distância relativamente ao dia em que um mastologista me disse "A mamita é toda para sair", olho para trás e reconheço na minha história contornos de novela. Desde esse tão presente dois de Janeiro de 2008, a minha vida tem vindo a alterar-se a muitos níveis, lentamente, como resposta, umas vezes mais, outras menos consciente, aos muitos episódios vividos, diversos na sua índole e nas pessoas envolvidas. Agora, sinto chegado o momento de contar o que me vai na mente e não a deixa sossegar, exatamente porque carece de registo. Este texto será, então, um relato de episódios verídicos, tal como hoje consigo recordá-los. Conto, deste modo, não ferir susceptibilidades, mas confesso que esse não é, para mim, um imperativo, pois não vou ficcionar e a verdade é o que é. A narração incluirá revelações de várias ocorrências que me marcaram no ano anterior ao cancro, ocorrências essas que fazem parte da minha lista de possíveis razões para ter adoecido, embora esteja consciente de que posso estar completamente enganada. Como vou escrever num blogue, será talvez difícil confinar cada episódio a um post, pelo que optarei por atribuir títulos aos episódios, os quais poderão atravessar vários posts. A escrita acontecerá ao sabor da vontade e da memória e aquilo que for sendo registado merecerá uma única revisão, aquela que acontece antes de cada publicação. Sem estrutura pré-concebida nem quaisquer pretensões literárias, vou escrever ao sabor do que me for vindo à ideia, com o intuito primeiro de me compreender como ser humano em transformação profunda. Porque assumir verbalmente é, para mim, um gesto fundamental para me conhecer. Os eventuais leitores desta "novela" poderão comentar cada post com liberdade absoluta, incluindo a de me oferecerem sugestões para tornar o relato mais interessante. Espero conseguir o meu objectivo de aprender comigo própria, mas farei os possíveis por não vos maçar com pormenores que não favoreçam a percepção do essencial, que é a transformação de um ser humano num período que ronda, até hoje, os quatro anos. Vamos a isso, então.