segunda-feira, 23 de maio de 2011

8. A Notícia

O relógio da Reguladora bateu duas horas. Depois do último almoço de férias, em família, os miúdos tinham pedido para alargarem a hora da refeição e começarem só às três a preparação para o primeiro dia de aulas do segundo período. Eu sentara-me à minha secretária e iniciava a arrumação de papelada que ficara do período anterior, como quem pensa “agora tem mesmo de ser”, pois a minha intenção consciente era lançar-me à preparação de aulas para o dia seguinte. Pouco fiz, todavia, pois, às duas e dez, o telefone tocou e eu atendi:
- Boa tarde, é de casa da sra. D. Margarida Faro?
- É, sim, sou eu.
- Daqui fala do hospital. O Dr. José Vaz pede que venha ter com ele.
- Agora?
- Sim, porquê?
- Não estava à espera. Pode ser... às três?
- Sim, venha então às três, que ele está à sua espera na urgência de ginecologia.
- Obrigada, até já.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
Moro a cinco minutos do hospital, mas, como não estava à espera de sair, não me sentia pronta, talvez não me achasse bem vestida ou talvez pressentisse que não estava preparada...
Disse ao Pedro que o Dr. José me chamava ao hospital. E os nossos olhares cruzaram-se, instantaneamente carregados de um conhecimento ainda não verbalizado por ninguém. Esperávamos o resultado da biópsia desde meados de Dezembro, pelo que um telefonema urgente do hospital, a dois de Janeiro, era praticamente uma notícia má!
Saí de casa depois de ter combinado encontrar-me com a Lurdes à porta da urgência, para onde, depois entrei com ela.
- Então, Dr.? As notícias são más?
- Bem, a mamita é toda para sair! - Não apreciei o eufemismo, que considerei mais violento do que qualquer enunciado que incluísse a palavra ‘cancro’.
- E agora?
- Tenho a agenda cheia, mas posso operá-la no dia 23.
- É?
- Sim, houve uma senhora que precisou de fazer quimioterapia antes da cirurgia e quis ir para o Porto. Ficámos com esta vaga, em Janeiro.
- E eu também vou ter de fazer quimioterapia?
- Antes da cirurgia, penso que não. Depois, logo se vê. Depende do resultado da análise. Mas não precisa de se preocupar, que nós temos cá tudo. Só a radioterapia é que terá de fazer em Coimbra, aqui não há.
- E vou fazer radioterapia? Antes ou depois?
- Só se sabe depois.
Nesta altura, a Lurdes interveio:
- Dr., não leve a mal, nós temos uma prima patologista, e ela costuma acompanhar os nossos problemas de saúde mais complicados... Que podemos dizer-lhe que se passa em concreto?
- Olhe, diga-lhe ‘carcinoma ductal’, ‘carcinoma ductal invasivo’.
Começava ali a minha familiarização com uma vasta terminologia médica que desconhecera até então. E começava também um longo período de fraqueza existencial enquanto ser humano, o primeiro lapso de tempo da minha vida em que me senti sempre qual eletrodoméstico avariado e necessitado de sucessivas intervenções de mecânicos...
- Obrigada, Dr., vou apontar. E quando volto cá?
- Eu amanhã telefono-lhe, pois preciso de falar com a minha colega.
- Obrigada. Até amanhã. Espero o seu telefonema.
- Até amanhã.
Ao despedir-me da Lurdes, no parque de estacionamento, verti uma lágrima.
- Eu estava à espera! Não tenho falado nem pensado, mas acho que já sabia desde o dia 17, quando o Dr. Carlos torceu o nariz a olhar para os meus exames...
- Olha, Guida, vou dar-te a minha opinião: Devias falar à Paula!
- Eu já uma vez lhe mandei um sms com o resultado de uma mamografia, e...
- Guida, as coisas importantes não se comunicam por sms; pega-se no telefone e fala-se. Liga-lhe!
- Está bem, eu ligo. Mas primeiro vou ligar aos meus pais.
- Claro. Queres que vá contigo até casa?
- Não, obrigada. Tenho lá a família toda.
- E vais bem? Estás bem?
- Estou. Vá, depois falamos mais, quando eu souber mais alguma coisa.
Peguei no carro sem saber como reagir. Decerto, seria suposto desfazer-me em lágrimas, pensar que ia morrer, imaginar-me amputada, rejeitar a ideia, gritar de revolta... Mas tudo o que estava a acontecer era que eu não sabia o que sentir, o que pensar ou o que dizer a mim própria. Talvez o Dr. José tenha sabido dar a notícia em conjunto com uma forte dose de anestesia, sei lá!
Entrei na garagem de frente e tive tempo de me deter na face de cada um dos meus cinco familiares diretos: os filhos, dos oito aos doze; o Pedro, que sabia bem ao que eu fora. Desci o vidro do lado direito, desliguei o carro e disse para todos, que se tinham juntado ao pé da janela:
- Tenho um cancro na mama, vou ser operada e vou ficar boa. - E, imediatamente, os quatro rolaram sobre os patins e continuaram a sua brincadeira. O Pedro abriu a porta do meu lado e deu-me um beijo. Só depois de subirmos, já no escritório, a sós, nos abraçámos, ambos sem perceber o que aquilo significava e, muito menos, o que iria acontecer-nos.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Interregno

Por ter ferido susceptibilidades, senti fraquejar o meu entusiasmo para relatar o meu caso de cancro. Tenho refletido sobre a melhor forma de o fazer, mas confesso que, não sendo escritora, não estou familiarizada com o modo de escrever sobre as pessoas da nossa maior estima, sem que algumas revelações as desgostem.
Lamento o facto de alguns de vocês terem criado expectativas que, por enquanto, estão goradas, mas continuo determinada a levar o meu projeto a bom termo, talvez até revelando os nomes verdadeiros daqueles que tentei transformar em personagens.
Perdoem-me esta interrupção e até breve.